terça-feira, 12 de abril de 2016

recordações

meu pai plantando pés de sinamão
enquanto minhas mãos infantis
brincavam com o cachorro pequinês
devia ser novembro ou  dezembro
lembro daquelas tardes de sol mágico
no bairro Santa Rosa
rua expedicionários Eugênio da Silva
número 547
nosso carro era um fusca amarelo 68
devíamos estar no ano de 1981
minha mãe lavava roupa
e as estendia nos varais azuis
havia muita areia fina no pátio
muitos pinheiros   muito esverdeados
havia galos e galinhas
galos de briga
que lutavam felizes
sangrando até a morte
lembro que comecei a torcer pelo Flamengo nesse verão
lembro que um dia
(não sei como)
meu pai arranhou as costas
passei mercúrio no ferimento
fiquei feliz
muito feliz
(acho que nunca tinha ficado tão feliz até então)
por ajuda-lo
por curar sua dor
aquele mercúrio cromo invadiu os pequenos cortes
avermelhados em sua pele
jamais esqueci aquele quadro de vermelho líquido
invadindo rios de sangue
tinha um amigo
Beto
(com quem sempre brigava)
ele dava botinadas em minhas frágeis canelas
eu arrancava fios de cabelo
verdadeiros chumaços de cabelo de sua cabeça
meu pai tinha uma moto CG 125
nova em folha
adorava subir nela
imaginava o vento sacudindo meus ombros
a casa era pequena mas eu achava enorme
 aconchegante
como se as paredes fossem aveludadas
eu tinha um quarto muito pequeno
era um quarto do meu tamanho
mas eu achava bom
tão bom quanto ouvir o apito do vendedor de picolé
foi naquele verão
numa noite atormentada por grilos histéricos
que guardo a mais profunda recordação
não consegui adormecer
lembrei pela primeira vez que tudo iria morrer um dia
os pés de cinamão
o sol do verão
o cachorro pequinês
aquele mês
aquela casa
aquela rua
o fusca
a CG
as roupas
os varais azuis
os pinheiros verdes
os galos
as galinhas
a casa pequena
o Beto
até chegar a pensar na morte
do meu pai
da minha mãe
e... na minha própria morte
senti um imenso vazio
maior que o maior rabo de uma puta
corri
berrando   chorando
até o colo da minha mãe
contei a ela o que estava sentindo
a morte escalando meu pescoço
não lembro o que ela me disse
deve ter falado em Deus
ela tinha me ensinado a rezar
mas daquele dia em diante
as preces não
adiantaram
mais...
  

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