terça-feira, 12 de abril de 2016

ela

ela andava
passos lentos se arrastavam pela calçada
de repente
como um raio gritante de sol
rasgando a noite em pedaços
ela lembrou
lembrou que estava só
(não conseguia explicar porque
não tinha lembrado disso antes)
mas lembrou
lembrou que tinha saído de sua pequena cidade
pequeno amontoado de gente
também pequena
tinha ido para a universidade da capital
vasto oceano de gente
 também pequena
(ela não conseguia também explicar
porque sentia todas as pessoas pequenas
inclusive ela)
e ela retornou   depois de formada   à sua cidade pequena
e de nada adiantou seus estudos
já que sua mãe deitou no túmulo
já que seu pai foi atropelado por uma moto
ao atravessar a rua lendo o jornal da tarde
depois daquela tarde de sol vermelho de raiva
ficou trancafiado numa cadeira de rodas
ela teve que assumir o controle da pequena propriedade rural
foi quando passou a se sentir mais pequena
como um sabonete que vai se desmanchando a cada banho
ela se tornou solitária
pois lá na capital fez amizades
aprendeu a flertar
usar sapatos de salto
usar maquiagem azul nos olhos negros
rebolar
teve namorados
conheceu o sexo
conheceu a bomba atômica de flores em fogo sangrento
ardendo entre suas pernas
e hoje   ela lembrou
lembro que já tinham passado alguns anos
(ela se irritou porque não conseguia
nem lembrar quantos anos eram!)
mas tinha certeza que
eram anos de desperdício para seu corpo que
agora ela percebia
estava velho e faminto
ela lembrou
dos olhos dos homens que a despiam
os olhos dos homens arrancavam cada peça de sua roupa
os olhos dos homens a jogavam nua no chão e a penetravam
ela gostava daquela sensação de ser assim olhada
ela lembrou
numa tarde de primavera indo de encontro
às retardadas galinhas
às estúpidas vacas
ao plantio dos grãos
ao arado e a colheita
"e o que eu quero com galinhas   vacas   grãos
arados   colheitas?   eu quero homens!"
ela pensava
fechou a cara
e com a velocidade da luz furiosa
fechou-se o tempo
bilhões de fios d'água cristalinos
adormeceram sobre ela
caiu em prantos
amolecida soluçava histérica
porque ela lembrou
(tudo porque ela lembrou)
estava só
após duas horas caminhando nestes corredores
que são as ruas das cidades
carregando nas costas toda essa água
surgiu o sol
se infiltrando como um espião por detrás das
negras nuvens víboras
ressuscitando a claridade   o calor do dia
com um cumprimento delicado na mão das senhoritas
ela lembrou
que há muitos anos atrás admirava o sol
sentiu seu cumprimento cálido na mão enrugada de frio
ela lembrou
de quem ela tinha sido
se ergueu numa postura sedutora
os bicos dos seios apareciam sob a camiseta encharcada
ela lembrou 
do seu trote de égua libidinosa
sorriu para a esquina
sabia
(não como nem por que   mas sabia)
sua solidão
estava
guilhotinada
                                  

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