sábado, 23 de abril de 2016

a colina

nasci em Joinville
Santa Catarina
(pelo menos é o que está escrito em minha carteira de identidade)
aos seis meses
num verão de fogo
cheguei ao vale do Iguaçu
(pelo menos é o que disseram meus pais)
e bebi a água açucarada do rio
e gostei do seu sabor marrom escuro
e permaneci nesse solo
(depois descobri
embaixo desse chão
havia muito sangue
muitos nativos de cabeça raspada
profetas aos farrapos
foram exterminados pelos militares na Guerra do Contestado)
mas esse não é um poema sobre
política ou história
é um poema que escrevo para mim
(assim mesmo vou compartilhar com quem
possuir insanidade nos olhos)
esse poema é sobre minha vida
sobre os galos de briga do meu pai
sobre os gritos histéricos e amáveis de minha mãe
sobre os dezessete anos e meio que vivi nesta terra
até o adeus
breve adeus
que me levou à outras terras
é breve porque retornei
como um filho pródigo cansado
de comer os frutos podres da terra estrangeira
se contar tudo que se agiganta
dentro da cabeça atormentada de lembranças
esse poema se tornaria um romance
mas não
o poema sempre conta
algo nebuloso
o que posso contar é que
após esmagar flores e comê-las
após viajar de carona com um quilo de maconha até São Tomé das Letras
após ver os espasmos de gozo de muitas putas e algumas virgens
após encontrar o amargo gosto do amor nas esquinas dos mendigos de Curitiba
após dormir nos gramados da faculdade de engenharia
após o diabólico casamento no qual o poeta se tornou ex-poeta
(e a cama o convidava a um sono de décadas)
após tanto negrume surgiu a delicada luz
(rompendo com chicotaços a face adormecida)
voltei
bebi novamente a água de cheiro doce do rio Iguaçu
espanquei as teclas novamente
como os maridos espancam as esposas
isso já faz mais de dez anos
e tudo que passou foi bom
e tudo o que veio depois também foi bom
e tudo que virá será bom
sou poeta
não elogio nem deprecio
a vida
apenas escrevo
com a devoção de uma prostituta barata
me entrego mais do que ela
me entrego por nada
dedico versos à multidão
um velho doente cachorro
uivando à toa
no topo
de
uma
colina

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